quinta-feira, 29 de julho de 2010



briga

O que eu quero são as experiências completas. As imagens penetrando minhas retinas como diversas drogas intravenosas, os sons reverberando não só dentro de meus ouvidos, mas dentro de mim, como se eu inteiro fosse uma caixa acústica, pronto para vibrar com cada Si Bemol e Ré Sustenido.
O que eu quero é me livrar de tudo o que me limita. Me limitam as telas, os vidros, as lentes, a carne, o dinheiro, os valores, os sentimentos, meus e dos outros, as palavras, a comunicação, a necessidade da comunicação.
E naqueles dois segundos, quando consigo de fato me livrar de tudo isso, quando não há carne ou comunicação envolvida, quando as informações me atingem como golpes no rosto, sem que eu tenha a chance de reagir ou de sequer pensar em reagir, naqueles dois segundos eu sou inteiro.
Não tente me enganar com meias palavras, meias imagens, meias velhas ou novas.
Não tente me tocar com meia pele, meia vontade, meia certeza.
Eu quero o preto no branco, e todos os tons de cinza.
Eu quero o azul, vermelho e amarelo que me ensinaram construir o arco-íris inteiro.
Eu quero as tardes tediosas de domingo e as sextas-feiras mais caóticas e cansativas e matadoras.
Eu quero morrer todos os dias, e renascer junto com o sol nos dias seguintes.
E se eu morrer de fato, quero que seja intenso, e que ninguem perca seu tempo lamentando assunto tão sem graça e inevitável.
Eu quero subir escadas correndo e tropeçar nos degraus pelo caminho.
Eu quero subir num ringue de luta livre com a Vida inteira no outro canto.
E quando ela olhar pra mim, imensa e ameaçadora, eu quero olhar de volta com toda a minha insignificância arrogante e dizer: "Vem pro pau."
E se eu começasse a sangrar pelo supercílio aberto, pelo nariz quebrado ou pela boca inchada, espero que do outro lado das cordas eu tenha o acaso pra me substituir por alguns minutos enquanto eu cuspo água no chão e faço cara de mau.
Se eu perder, vou perder com um sorriso aberto e sem dentes, até que ele se apague do meu rosto como eu hei de apagar da memória do mundo.
Se eu ganhar, vou ganhar sem a menor modéstia e com a imensa arrogância que minha pouca idade ainda me permite.



escrito por Gabriel Caropreso às 19:26


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domingo, 4 de julho de 2010



solidão

Eu ganhei no bingo um pernoite no motel. Eu queria mesmo uma televisão de plasma.


escrito por Gabriel Caropreso às 09:21


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sábado, 26 de junho de 2010



maracujá

Eu me apaixono todos os dias. Mais de uma vez por dia, até. Mesmo nos dias feios. Mesmo nos dias que alguém se joga no trilho do metrô e atrapalha a movimentação dos trabalhadores.

Pelo céu, quando ele é cor-de-laranja.
Pelas notas musicais do meu trompete.
Pelas notas musicais do mundo.
Pelo cheiro das páginas brancas de um livro bom.
Pelas palavras de sabedoria do meu avô.
Pelas moças bonitas que passeiam pelas ruas, entre os carros, entre os trabalhadores atrasados, entre as vidas.
Pelas letras do Adoniran que falam daquilo que falam e pronto.
Pelos espetáculos de dança que eu nunca entendi.
Pelas peças ruins e mal encenadas.
Por uma coisa de cada vez.




Mas pelo mundo inteiro.


escrito por Gabriel Caropreso às 15:12


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sexta-feira, 2 de abril de 2010



já foi melhor.

Quando se tem do que falar, o vocabulário fraco não é problema nenhum.

Mas e quando não se tem nada a dizer?



escrito por Gabriel Caropreso às 23:00


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surpresa

Foi dentro de um livro desses escritos nos anos 50, que ora me consumia, ora me perdia que eu a encontrei.

Foi aparecendo aos poucos, tímida. Começou lá por volta da página vinte e cinco, na forma de umas rugas suaves e foi se revelando a cada página virada, devagar como as coisas bonitas se revelam, um rosto na multidão que demora a ser reconhecido, um pôr-do-sol particularmente laranja ou as formas de um caleidoscópio.

A cada página virada, dava uma dica do que poderia ser, passou de gotas d'água a gotas de café, até acabar com o mistério e revelar-se de fato uma flor, agora morta e seca, marcando uma página com sua presença e outa meia dúzia com seus rastros de vivente.

A flor que jazia ali, morta me trouxe pedaços de vida em memória já a muito perdida.

A nostalgia toma várias formas. Desta vez veio numa flor seca entre palavras de uma história não tão interessante quanto as que a gente vive de verdade.



escrito por Gabriel Caropreso às 22:36


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sábado, 20 de março de 2010





Quanto tempo ainda resta a todos nós, que andamos de lá pra cá sem muita vontade, sem muito destino, sem muita coragem?

Um pouco desinteressado sigo, o mundo é um borrão, como se visto de dentro de um brinquedo de um parque de diversões. Sairei confuso tambem?

Espero algo de impressionante acontecer, sem alimentar a pouca esperança que me resta.

Restos do que já fui e já quis ser olham de volta pra mim no espelho. O brilho dos olhos é a única coisa que me mantem aqui, isso e talvez o frio na barriga.

Olho o teto por horas, deitado no chão gelado, tragando a neblina densa que preenche o quarto escuro.



Meras lembranças do passado e do futuro incompleto me deixam a quilômetros de distância da realidade branca das paredes do quarto.

Agora penso um pouco em ti e um pouco em mim, brinco de imaginar o que somos e o que podemos ser, eu e você ou nós.

Isso me mantem acordado até os primeiros raiso de sol atravessarem com dificuldade a janela fechada.

Serei definido pra sempre por madrugadas deitado no chão e raios de sol falsamente promissores? Quem vai saber...



escrito por Gabriel Caropreso às 18:19


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quinta-feira, 5 de novembro de 2009



noites.

Roberto Alves, 52 anos, acende um cigarro de filtro marrom, carrega uma Taurus Calibre 38 com cinco balas. Encosta o cano gelado na têmpora direita. Contrai os músculos do indicador direito.
Fernando Oliveira, 20 anos, prepara uma fileira com vinte comprimidos coloridos. Observa a garrafa de cachaça vazia enquanto engole um a um, ajudado pelos goles do último copo. A saliva espumante cobre o peito, os espasmos consomem o corpo, o corpo cobre o chão da cozinha de azulejos cor de pele.
Renata Dimenstein, 26 anos, aspira a última linha de pó branco de uma mesa de tampo de madeira escura. Observa as luzes acesas no prédio em frente. A terceira janela da esquerda para a direita no quarto andar, a primeira no décimo primeiro e a segunda no décimo quinto. Sobe no parapeito e se inclina para frente até perder o equilíbrio. Independente do vento ensurdecedor que luta contra, ela finalmente atinge a calçada suja.
Otávio Granato, 32 anos, ouve os últimos acordes de um disco de jazz de 1954 numa antiga vitrola bege e vermelha. Salta de uma cadeira para a suspensão no ar, pelo pescoço, por uma corda improvisada com lençóis rasgados. O formigamento das extremidades acaba junto com toda a consciência.
Um carro ou outro atravessa a avenida furando os semáforos.
As primeiras gotas da garoa brilham no asfalto.
O resto do mundo adormecido.




escrito por Gabriel Caropreso às 22:59


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segunda-feira, 5 de outubro de 2009



sobre rodas

Impossível deixar de pensar naquele rosto.

Um anjo anônimo que dormia encostada num vidro imundo, sentada num banco imundo vestindo roupas que não lhe cabiam.
Por muito tempo beijarei aquele rosto em meus sonhos, o sonharei em minha vida, sonharei minha vida nele.
Amor infinito, o amor dos itinerários de ônibus. Amor que surge antes da próxima parada, apertar o botão e descer. Amor que não dura o suficiente para terminar.
Quando desci, ela ainda dormia sorrindo, sonhando uma paixão qualquer.
Jamais cheguei a conhecê-la, e por isso a amo.
Amo com sinceridade infinita. E fidelidade infinita.
Sinceridade de quem se apaixona sobre quatro rodas, entre pessoas invisíveis quaisquer, entre um ponto e outro.
Fidelidade do que nunca se concretizará, e por isso é eterno.
Seremos anônimos.
Seremos eternos.
Seremos amantes.


escrito por Gabriel Caropreso às 19:37


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terça-feira, 22 de setembro de 2009



domingo

Mais uma vez seu perfume me pôs pra dormir e eu sonhei.
Um apanhado do que eu vivi no dia, você estava lá.
Umas pistolas de brinquedo, uns doces, um desconhecido carismático.
Levantei buscando ainda seu perfume em minhas mãos e me tranquilizei ao encontrá-lo.
Levantei com a nostalgia do que não conheço e passei um café fraco, ao encontrar os últimos gramas de pó negro em um pote de vidro.
O dia era frio, e eu não tinha muito a fazer, além de sonhar mais, dessa vez em vigília, manipulando as imagens. Você estava lá.
Limpei meus óculos sujos na barra da camiseta e fiquei alguns minutos fitando a parede da cozinha e projetando nela o que quer que eu pensasse.
Uma praia de areia branca, uns livros, um sábio, uns amigos.
Abri uma fresta na janela, o ar gelado inundou meus pulmões e me lembrou estar vivo, o cheiro de manhã provocou minhas narinas e brincou com minha ansiedade sempre presente.
Era um dia de paz.
Paz de sorrir sozinho.
Paz de pensar em ti.
A cidade sorriu de volta, convidando.
Peguei uns trocados, caneta e papel e um barulho qualquer e fui.
Umas vitrines, umas roupas velhas, umas bitucas de cigarro.
Sentei na calçada mais tranquila e olhei os carros enquanto me surpreendia um som extraordinário saindo de uma loja de discos próxima.
Nos dias ruins eu não deixo minha cama esperando a morte chegar.
Nos dias bons eu penso em ti e isso me basta, sabendo que nunca a terei.
Deixa estar, digo a mim mesmo.
Um pouco de cor no cinza, o céu azul, a pele gelada.
O dia bom corre, impassível, inabalável. Independente do amanhã que, sendo bom ou ruim, será de verdade.
Conto uns trocados, compro um chiclete.
Domingo traz a dose certa de pesar.


escrito por Gabriel Caropreso às 20:22


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domingo, 23 de agosto de 2009



Carta a mim mesmo.

Sonhe.
Não como fuga ou alimento para a ilusão, mas como alimento para a alma.
Busque alcançar o que quer e lute por isso.
Não deixe nunca de saber quem e o que lhe faz bem.
Nunca se envergonhe de dizê-lo.
Não se desculpe por ser.
Não deixe de sorrir.
Não deixe de fazer sorrir.
O mundo é muito grande, lembre-se.
Não se esqueça de amar.
Saiba que alguns te amam.
Nem todos os que o dizem, mas aqueles que o dizem com verdade nos olhos.
Confie no olhar, confie na esperança, confie no acaso.
Acredite no que puder.
Troque o que tiver pra trocar.
Ofereça o que tiver pra oferecer.
Não perca o brilho nos olhos.
Não perca a vontade.
Não perca a paixão.
Se tiver de chorar, chore.
Quando não tiver ninguem, lembre-se de si.
Faça o bem.
Não se arrependa de absolutamente nada.
Torço por ti.


escrito por Gabriel Caropreso às 23:32


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quarta-feira, 17 de junho de 2009



fotótipo

Somos todos iguais. Ou muito parecidos, se quiser.
Acontece que, para mim agora, eu só precisava de um cigarro, e que ela me abraçasse bem forte e dissesse o que quer que seja. Que sua voz doce soasse como soava quando ela suspirava hoje, mais cedo.
Que eu me aliviasse desse peso que me faz temer a gravidade.
Eu queria que ela me quisesse bem tambem. E só.
E depois, quem sabe?
Amanhã existe? Pra mim existe hoje.
E seu abraço que não tenho, e o cigarro que não tenho.
E o tamanho imensurável desse quarto.
E eu tão pequeno.
Só queria seus lábios, seu corpo quente, queria-te.
Eu e o Roberto, o John, o Belchior, o Marcelo, o China, o Chico, o Fagner o Fábio, o Frank, O Elvis...


escrito por Gabriel Caropreso às 22:55


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domingo, 12 de abril de 2009



a menina das viagens, das notas e da câmera diz:

"Depois pergunto mais sobre os sonhos para você, você parece um Sandman pra mim agora."

pequenas coisas alegram minhas madrugadas.


escrito por Gabriel Caropreso às 22:58


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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009



revisitado

Tomou pela manhã uma xícara de café enquanto mordia uma maçã que encontrara escondida na geladeira. Começava o dia em choque térmico.
Olhava em volta, satisfeito, via tudo em seu devido lugar, tudo onde deveria estar.
Sorria ao lembrar de sua noite mal dormida. Sonhara sonhos curtos, mas se lembrava de um limão, vai entender...
Azul e amarelo permeavam seus pensamentos vagos, e ele criava com essas cores imagens sem sentido para mais ninguém.
Olhou pela janela, que beijava uma garoa fina e gelada. O dia era cinzento, azul e amarelo.
Dançava sem música.
Divertia-se.
Domingo é sempre assim.
Acordei chupando um limão.
Duas cores na cabeça.


escrito por Gabriel Caropreso às 05:09


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terça-feira, 25 de novembro de 2008



colorir

Visto com prazer o papel que me é designado constantemente.
Não entender o que se passa ao meu redor já é parte de meu cotidiano, então me atento ao essencial.
Aos cavaleiros e dinossauros que passeiam no céu azul, quando ele é azul o suficiente para notarmos seus formatos.
À linha contínua que corre ao meu lado à direita, e aos traços que deixo pra trás à esquerda.
Não atento ao que me dizem, pois de nada importa para mim.
E o que poderia responder?
Respeito demais as palavras para usá-las assim, sem motivo.
Então me faço de criança, colorindo as nuvens com pedaços gigantes de giz de cera e inventando canções para quebrar a monotonia que me envolve constantemente, eternamente.
Meu mundo é nessas canções, colorido de giz de cera fora das linhas.
O resto é a vida real, que não merece atenção.


escrito por Gabriel Caropreso às 18:21


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quinta-feira, 30 de outubro de 2008



outra vez.

risquei no meu braço aquilo em que mais acredito.
somnium.

Tive alguns nesta noite.
Eu usava uma cueca preta, tocava um trompete, conhecia uma garota no metrô.

Isso é meu, e faço o que quiser nessas 6, 8 ou dez horas.
É infinito.

quando o sol já luta com a fresta da janela emperrada, termina, pra começar de novo no travesseiro seguinte.

para acordar suado ou cansado.
para acordar em paz de novo.

Infinito outra vez, em eternas repetições de situações coloridas.


escrito por Gabriel Caropreso às 19:45


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terça-feira, 19 de agosto de 2008



cidades e jogos.

Eu inventei cidades.

Em uma delas, as pessoas dançariam uma coreografia eventualmente, quando uma música pre-determinada tocasse nos auto-falantes da cidade. Essa coreografia seria ensaiada em todas as escolas.
Quem não dançasse seria preso.

Em outra, não haveriam portas, cada um abriria a sua própria com uma marreta.
Aqueles que prezassem muito por paredes construiriam janelas bem grandes e baixas.

Noutra, os serviços de transporte e iluminação pública seriam fornecidos por grandes empresas de efeitos especiais.
Os turistas aplaudiriam, impressionados com as corridas emocionantes entre lotações equipadas com óxido nitroso e trens-bala e com as lâmpadas intencionalmente fracas ou fortes, dependendo da atmosfera a ser atingida em cada via.

Eu também inventei jogos.

Um deles era disputado por pessoas com altos graus de miopia. Seus óculos seriam colocados em pontos estratégicos de uma grande arena, aquele que encontrasse seu respectivo par de óculos primeiro, vencia.
Pisar nos óculos alheios é falta. Cenoura cai no anti-doping.

Outro era disputado por gerentes de diferentes áreas do comércio e prestação de serviços. O objetivo é nocautear o adversário de tédio.
Gerentes de RH teriam um time incomparável.


escrito por Gabriel Caropreso às 20:33


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quarta-feira, 23 de julho de 2008



convocação

Caros amigos,

tragam pólvora e fogo
tragam nitroglicerina
morteiros, granadas
dinamites e todos os etecéteras

tragam toda a munição, toneladas de aço
tragam lâminas e bastões de baseball
coquetéis molotov e garrafas quebradas
tragam seus punhos e preparem-se para sujá-los
tragam todo esse ódio

porque hoje nós vamos matar todo o mundo.


escrito por Gabriel Caropreso às 22:07


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terça-feira, 15 de julho de 2008



777

Era um bar ou um café escuro. Decorado em tons de madeira, azul e vermelho. Frequentado por todo tipo de gente estranha envolvida com ocultismo, magia e essas coisas que não deveriam funcionar mas funcionam.

Eu andava por entre as mesas, me desviando dos garçons que usavam turbantes roxos, e aventais escuros e manchados. Nas mesas, a gente estranha brincava com incensos, velas, pedras e tecidos, recitando palavras em línguas estranhas, talvez imaginárias.

Encontrei a cigana em uma mesa redonda e grande. Várias xícaras e pratos vazios e sujos descansavam sobre a mesa, indicando a quantidade de pessoas que passara por lá naquele dia. Ela vestia tecidos caros e coloridos, extravagantes, tinha os cabelos negros e uma maquiagem carregada nos olhos. Era bela, porém, de uma maneira que intimidava. Fumava um cigarro e perguntava entre a fumaça quais eram minhas intenções naquele lugar. Eu amava, e não deveria, essas eram minhas intenções.

Ela ria uma risada alta e muito bem ensaiada, com um olhar de pena tão bem ensaiado quanto. Minha ingenuidade não é novidade pra mim, o que é uma contradição, talvez.

Então ela embaralhou aquelas cartas mágicas e as depositou na mesa, escrevendo minha história em cima da mesa, como quem rabisca um diário à tinta. O que estava ali não poderia ser apagado. Três setes. Ouros, paus e espadas. Ela sorriu, e eu sorri, nervoso. "Afaste-se dela, menino." Ela disse, como se me desse uma ordem, ou um conselho importantíssimo, algo que mudaria minha vida. Era para isso que eu estava lá, afinal.

Uma bruxa velha nos observava por detrás de uma cortina vermelha que cobria a entrada de algum lugar que eu não queria conhecer. Seu olhar me dilacerava por dentro, eu sentia seu ódio em minha nuca.

"É tão ruim assim?" perguntei, com minha paixão de criança congelando minhas vísceras.

"Três setes" ela disse, e mais nada.

A sala sumiu, a cigana, as xícaras, a parede de madeira, tudo desapareceu num furacão. Abri os olhos, aflito. Três setes ilustravam minha manhã.


escrito por Gabriel Caropreso às 09:31


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quarta-feira, 2 de julho de 2008



boom.

Vem como um tiro no peito, e eu aceito. Deixo que o aço e o chumbo naveguem pela minha carne, pelos meus músculos, por todos os tecidos internos. Parte dele fica em mim, como prova de um ato de humilhação. Parte sai pelas minhas costas e se espalha pelo chão, inerte.

Inerte como eu, estirado no chão, impotente, observando as partes de meu corpo que pousaram a metros de distância e me despedindo delas, me despedindo de minha consciência e de minha existência. Contando os segundos calmamente, esperando meu sangue se espalhar pelo asfalto, não dando atenção para os gritos de desespero.
Não me desespero, espero as lágrimas rolarem por meu rosto conformado e aceito o que vem, e o que vai.

Vou em paz.

Meus sentidos explodem de repente, como se encontrassem com o mundo pela primeira vez, e eu atinjo um êxtase de emoções amplificadas à máxima potência. Tudo o que eu já conheço é novo, todos os sons e imagens, todas as cores e texturas, todo o pensamento se expande.
Vivo segundos em um orgasmo eterno, contemplo a eternidade, compreendo toda a verdade óbvia que ainda não tivera a chance de conhecer.
E volto, arrastado e contrariado, à realidade.
E a realidade é como a experiência de assistir a uma televisão antiga. A imagem é bidimensional, embassada e o som é parecido com uma guerra nuclear da perspectiva de um submarino.

Imploro por outro tiro, outra oportunidade, imploro outra chance de desistir.
Meu instinto não permite, minha natureza resiste.
E então me desespero pela primeira vez, gritando com a voz que não tenho mais, me contorcendo entre lençóis manchados, chorando.
Durmo.

A vida continua, sem cor.

E eu aceito o que vem, deixando de ir.


escrito por Gabriel Caropreso às 13:41


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domingo, 29 de junho de 2008



vida real

às vezes eu me perco.
é muito fácil se perder nesse contexto extremo.
aí eu sonho.
e nos sonhos me encontro.


escrito por Gabriel Caropreso às 18:36


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sábado, 21 de junho de 2008



HEY!

Não se iludam, senhoras e senhores.
Ninguém existe.


escrito por Gabriel Caropreso às 16:38


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domingo, 15 de junho de 2008



fênix.

Cresce dentro de mim.
Queima minhas entranhas, todos os meus órgãos vitais.
Ódio.

Queima meu oxigênio, então não respiro e não penso.
Queima meu coração e minha pele, então não sinto.
Queima minha retina, então não vejo.

Construo mil homicídios imaginários.
Não satisfeito, projeto mil suicídios.
Temo a mim.
Tenho a mim apenas.

Caminho entre o fogo e sobre as brasas.
Queimo, sem dor.

Então durmo e espero.
Amanhã, outro surge.
Sigo em combustão constante.


escrito por Gabriel Caropreso às 17:49


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caleidoscópio

Um assunto puxa o outro.
As coisas são assim mesmo.
Umas cores, uns espelhos, umas ilusões.
Uma paixão, uma loucura, uma semana e fim!
E nada é de novo. Semelhante talvez. Mas ser de novo como a segundos atrás, não.
O amor é como um caleidoscópio.
Novas configurações trazem novas surpresas, e nada é como antes, como a vida.
Como os sistemas, como o mundo, como o universo.
Uma constelação entre espelhos.
Amar é tão fácil. É só olhar as cores e as formas.
E pronto, o corpo faz o resto.

O problema é que o ódio funciona assim também.


escrito por Gabriel Caropreso às 16:41


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terça-feira, 3 de junho de 2008



o sonhar

sonhar todos os universos possíveis
e ocupá-los
sonhar personagens aleatórios
e conhecê-los
voar, observar, olhar, ver, sentir.

explorar todas as dimensões possíveis
viver infinitas possibilidades
morar em um caleidoscópio
onde eletricidade explode em regiões inabitadas
então não temos como ouvi-la
e uma música moderna recentemente inventada toca, bem longe
então não sabemos se ela existe mesmo
apesar de tudo existir.
o céu é dia à noite.
e à noite, a noite existe de vez em quando.
mas quase nunca.

fechar os olhos e dormir, é abrir os olhos para a verdadeira realidade
se o mundo é o que percebemos dele
então sonhar o mundo é sê-lo.
e ser o mundo é o sonhá-lo
em sonho vivemos, realmente
e o viver no mundo é questionavelmente real
questioná-lo em sonho é acreditar.

tudo faz sentido pra todos nós, sempre que existimos.
e, para existir, basta pensar.
e sonhar é a evolução do pensamento.


escrito por Gabriel Caropreso às 12:37


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domingo, 1 de junho de 2008



prestes.

Esse texto é sobre uma idéia. Não é uma idéia original. É uma idéia boa.

Gabriel pegou a última mala que faltava, encaixou no porta malas do Fusca 74 que fora o resultado de alguns meses de trabalho, fechou o zíper de seu casaco até quase o queixo e olhou para o portão verde, que ele enxergava laranja. Entrou pela última vez na casa antes de partir, passou pelo corredor do quintal e subiu as escadas. Esperou que seu irmão o notasse. Umas caixas de som caras pra cacete tocavam um metalcore frenético, e Pedro voltava algumas frases, terminando alguma edição ou algo assim. Assim que o bumbo duplo e as guitarras distorcidas pararam, Pedro notou Gabriel na porta e sorriu.
- Você tá indo agora?
- Tô.
- Come umas argentinas por mim.
- Quem sabe umas peruanas.
Gabriel sorriu e abraçou seu irmão, um abraço de irmão de sangue, daqueles que grita silenciosamente um "eu te amo" bem macho.
Desceu as escadas e entrou pela cozinha, Luiz cozinhava alguma coisa mirabolante, pois era domingo.
- Tô indo pai.
Luiz abriu meio-sorriso.
- É foda criar um moleque vinte anos pra ver ele virar palhaço.
- Coisas da vida, mano. Estrala minhas costas?
O pai deu um abraço no filho, levantando-o ligeiramente do chão.
- Te ligo de algum lugar - Gabriel disse.
- Tá bom. - o pai respondeu, com aquele tom de "te amo mas não sei como expressar", que ele usava com frequência.
Gabriel saiu pela porta da cozinha e subiu as escadas para encontrar sua mãe suspirando, como se aquele suspiro fizesse com que ele mudasse de idéia. Ele não mudou, claro.
- Vai com Deus, filho, e me liga de vez em quando pra matar as saudades.
- Pode deixar.
Outro abraço longo, e umas duas lágrimas de saudade antecipada.
Só faltava um quarto, ele entrou devagar e encontrou Giulia terminando o dever de casa. Física.
- Me ajuda?- ela pergunta, rindo.
- Perdeu, prayboy, tenho que ir...
- Te amo, viu gabilas?
- Eu sei - ele sorri mais uma vez, dá uma mordida e um abraço de despedida, e desce as escadas para uma nova vida. Buzina umas vezes saindo com o carro, e põe uma fita cassete gravada especialmente pra ocasião. Chet Baker, o branco mais preto da história.
Parou na frente do prédio na rua das Baunilhas e fez uma ligação.

O celular de Beção tocou, ele atendeu um "já desço" e desligou.
Silvana esperava seu beijo de despedida, quase conformada. Ela não podia impedi-lo de viver a vida. E era por pouco tempo.
- Dê, me ajuda a levar as malas?
- Vamo aí.- Denis pegou a barraca e uma das malas grandes, Beção pegou a mala onde estavam todos os malabares e a outra mala grande e eles desceram.
Elevador.
- Terminei o Resident 7.
- Bacana.
- Agora eu vou tentar abrir o Leon com roupa de drag queen.
- Pode crê.
Térreo. O portãozinho velho de ferro, as malas dentro do carro, o iPod no bolso, a câmera na mão.
- E aí Dê, tudo bem?
- Tudo bão, e com você?
- Tudo bem.
- Juízo vocês dois hein?
- Pode deixar. Dá um beijo na sua mãe, fala que eu devolvo o filho dela daqui a alguns meses.

O Fusca parte, deixando o passado pra trás.
E nossas vidas passam a ser vistas por nós como antes e depois daquele momento.

- Como eu pego a marginal mesmo?
- Mano, me deixa dirigir.
- Nem fodendo.


escrito por Gabriel Caropreso às 20:51


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sábado, 31 de maio de 2008



choveu!

Trabalhava num circo onde, quando chovia, não havia espetáculo.
E estava chovendo.
Então, ela se escondia debaixo de cobertores e brincava com fantoches de meia, brincava com as lágrimas que enchiam seus olhos quando bocejava, brincava com a luz, e a luz brincava com ela. A luz propõe diversas brincadeiras pra quem está disposto a prestar atenção, quase ninguém presta, porém.
Algumas bolas coloridas rolavam com vida própria pelo chão frágil do trailer, perdendo-se e mudando de idéia pelo caminho, e tudo ficava bem.
No acampamento, cada um fazia o que uma família comum itinerante com 4 malabaristas, 3 trapezistas e uma fantasia de "Monga, a mulher macaco" faria, o que é isso não posso imaginar.
Um pai irritado tentava fazer o possível pra se concentrar em um novo e mirabolante número de ilusinismo, enquanto seu filho hiperativo, famoso por fazer malabarismo com sete frigideiras aos oito anos procurava os objetos mais perigosos que pudesse encontrar para pregar uma peça em alguém, enchendo o saco de todo mundo no processo.
O patriarca da família bebia vinho e assistia a algum programa terrível de sábado à tarde na televisão gratuita, sozinho em um trailer escuro muito bem iluminado pelo sol.
A chuva fazia bem de vez em quando.


escrito por Gabriel Caropreso às 19:03


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sexta-feira, 23 de maio de 2008



coisas que a gente faz na vida



Setembro, 2007





Maio, 2008


escrito por Gabriel Caropreso às 21:11


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quinta-feira, 22 de maio de 2008



viagem

Aquele sujeito estranho vestindo umas roupas largas e um tanto surradas entrou pela porta da frente, me deu um dinheiro em moedas e foi para a porta de trás, dormir.
Naquele horário, a viagem daria duas horas ou mais para que ele descansasse sua alma que, dava pra sentir, estava um tanto cansada.
O Sol acabava de se pôr num céu cinza alaranjado, tornando-o preto e sem estrelas e eu esfregava meus olhos com mãos sujas de dinheiro e gente. Era a última viagem do meu turno, e eu esperava ansioso por um gole de qualquer coisa muito gelada e pela fumaça de alcatrão que era tão bem-vinda nos meus pulmões.
Tudo era negro naquela noite, mais do que o comum, e um frio inesperado invadia aquele ônibus de uma maneira terrível. Apertei meu casaco alguns botões e procurei me distrair com as placas que começavam a ser escassas naquela cidade, deixando algum falso respiro visual, povoado de paredes mal pintadas e sujeira por todos os cantos.
Comecei a me sentir mal, um tipo de tristeza inexplicável, pontuada com náuseas repentinas e uma dor de cabeça terrível, que ia e voltava. Era estranho, mas nos intervalos eu sentia uma paz absoluta, algo impossível naquele trecho da avenida e naquele horário do dia.
O resto da viagem foi torturante, os passageiros eram como fantasmas sem face, que me entregavam um dinheiro sujo e vomitavam palavras em meu rosto, para que eu lhes devolvesse o troco, eu nunca quis tão desesperadamente sair de algum lugar quanto quis ali.
A viagem terminou, todos os passageiros desceram menos um.
Fui acordá-lo, sem êxito. Sentei-me ao seu lado. Teria sido um rapaz bonito, se não fosse tão maltratado durante sua curta vida.
Tirei meu esperado cigarro do maço e o acendi com um palito de fósforo barato.
Liguei para a ambulância e esperei, sentado ali, lutando contra o que quer que seja que sugava minhas energias.
As sirenes não demoraram.
Nunca mais tive tanto sossego quanto naquele banco, durante aqueles vários segundos.


escrito por Gabriel Caropreso às 16:50


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segunda-feira, 5 de maio de 2008



brincadeira

Domingo à tarde.
Depois de alguns tiros.

Baqueta, chão.
Baqueta, porta.
Palmas, baqueta, porta, baqueta, chão.
Aros, porta, aros, parede, baquetas, chão.
Porta.
Silêncio.
Baqueta, chão, cama.
Panelas, colher, tampa.
Pau, tampa, baqueta, chão, baqueta, parede, aros, parede, armário, baquetas, parede, tampa, pau, colher, tampa, parede.
Claves, escada, corrimão, claves, degraus, baquetas, corrimão, baquetas, aros, chão, corrimão, claves.

Latas, pente. Garrafas.
Teto, garrafas, frascos, corrimão, baquetas.

Silêncio.


escrito por Gabriel Caropreso às 08:11


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quarta-feira, 30 de abril de 2008



inspiração

Me sentei na cadeira em frente àquela velha escrivaninha de madeira grossa, depositei meu cigarro pela metade no cinzeiro empoeirado que mudara de cor durante todos aqueles anos de uso. Cinzeiros nunca se estragam, só se transformam, é uma teoria que eu venho desenvolvendo.
Quando eu não sei o que eu escrever eu leio, dá tudo na mesma. Todas as idéias já foram pensadas e trabalhadas, em sonho ou realidade, não importa. Tudo o que é escrito teve de ser pensado antes, e tudo o que foi pensado se sabe. Tudo se sabe. Escrever é apenas um longo exercício de memória.
E ler, é se lembrar do que já pensamos ou teríamos pensado de qualquer maneira. Tudo que lemos foi escrito por nós em outra ocasião. Se não foi poderia ter sido.
Faz muito sentido pra mim.

As gotas escorriam pelo lado de fora de um copo meio-vazio de uísque com três pedras solitárias de gelo, e eu decifrava tipos como se pintasse um quadro. O único quadro que eu possuía me fitava com certa curiosidade, como se quisesse saber o que aquelas páginas meio amarelas me diziam. Então eu lia alto, para me lembrar que eu tinha voz, e para satisfazer a curiosidade de uma alma presa em tinta óleo.


A vida pode ser muito simples, e deveras divertida, quando se tem boas páginas em branco, garrafas coloridas com teores alcoólicos diferentes e algumas notas musicais compondo uma harmonia qualquer.
Proponho um brinde a todos nós.
A todos aqueles que pensam.
A todos aqueles que criam.
E a tudo a que essa criação se deve.


escrito por Gabriel Caropreso às 13:12


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terça-feira, 1 de abril de 2008



pulso

Ele a encontrou quando não havia mais sol, o bar fechado, uma lâmpada de um triste poste de luz tentava iluminar toda a rua. A garoa fina tornava tudo mais difícil de enxergar, deixando que a imaginação de cada pedestre completasse as lacunas de seus campos de visão.
Ela não se importava muito com nada, mas alguma parte escondida de seu organismo desgastado por antidepressivos e doses exageradas de álcool entendia o que aquele homem escondido atrás de um casaco alguns números maior significava.
Ele se importava demais com tudo, portanto se incomodou com a maquiagem pesada que escorria dos olhos dela, com seu cigarro que lutava para permanecer aceso, com a teimosia com que ela ficava sentada esperando observando a água escorrer lentamente pela calçada. Se incomodava pelo jeito com que ela desconsiderava tudo que o acaso preparava metódicamente para acontecer ao redor dela, como que esperando alguma reação. Ela só se incomodava com a árvore que deixava de ser idêntica ao retrato de Anthony Murphy por causa de apenas um galho torto. Ela considerou desentortar o galho, mas decidiu não se dar ao trabalho.
Ele abriu seu guarda-chuva, e foi até ela.
- Esse é só o começo - ela disse
- É?
- É.
- O começo de quê?
- Você não ia querer estragar a surpresa não é?
- De maneira alguma.
Eles ficaram ali, ao lado do poste de luz, completando as lacunas que faltavam do quadro em movimento que se transformava em suas retinas a cada segundo, colorindo de tons de cinza, âmbar e preto uma tela que se formaria sozinha com talvez um pouco mais de dificuldade. Não dando a mínima atenção a Anthony Murphy, que tentava reposicionar o galho corretamente.
Era só o começo mesmo, não havia motivos para pressa.


escrito por Gabriel Caropreso às 07:43


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quinta-feira, 13 de março de 2008



transfiguração

Aquela música dentro vibra por todos os meus órgãos internos, deixando o trabalho dos músculos muito mais fácil, é só deixar a vibração continuar. A música fora estimula a atmosfera quase mágica, e faz com que todos procurem a mesma melodia, cada um com seu ritmo, mas em sintonia.
O respeito por todos que já vestiram aquela máscara vermelha, a concentração no corpo e na alma, como quiser chamá-la. A sala se enche de energia, meus pulmões, olhos e pés recebem esta energia, renovando-a, trazendo-a para mim na forma que eu precisar.
Minha pele se arrepia por debaixo de uma segunda pele, que acabo de vestir. Sinto o cheiro de látex, observo pela primeira vez a sala onde eu já estive diversas vezes, ouço a música externa, percebo a música interna. Já não sou mais eu.
Os olhares se encontram, sem nenhuma interação, cada um percebe o que lhe é importante e carrega isso para si. Logo a interação acontecerá.
O andar é outro, a percepção é outra, o olhar é definitivamente outro.
Cada movimento é uma oportunidade, cada sentimento é uma oportunidade maior ainda, cada pensamento é registrado e esquecido.
Em frente àquela pequena cortina azul, observado por todos, me sinto completo, me lembro apenas de ser, esqueço tudo que não está envolvido com agora, com essa euforia contida, que me permite ser o que nunca fui e só sou agora.
Payaso.


escrito por Gabriel Caropreso às 18:10


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quarta-feira, 5 de março de 2008



-digno de nota-


A trilha sonora do filme do Bob Esponja é muito boa.


é algo que a gente não espera.


escrito por Gabriel Caropreso às 20:13


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terça-feira, 4 de março de 2008



vodka e socialismo

Sentado em frente àquela tela ameaçadora, procurando o que escrever.
Eis que toca o telefone, interrompendo a linha de pensamento, e me deixando bem puto, pra falar a verdade.
Atendo para ser saudado por uma inacreditável música russa, com acordeões, pratos e gente gritando.

Esse mundo é fantástico.


escrito por Gabriel Caropreso às 12:51


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325, Augusta

O transporte público já estava prestes a deixar seus funcionários descansarem. Nessas cidades, o transporte público é um organismo vivo. Mas naquela rua que vai do centro ao luxo, em uma sala escura de verdade, acontecia algo inexplicável. E esta é uma afirmação pretensiosa, pois tentarei explicar ou descrever o que quer que seja que deixava todos tão inquietos.
Haviam umas 30 pessoas distribuídas em cadeiras confortáveis e bancos de plástico barato. Toda a existência já havia alcançado seu ápice e protagonizado a cena, e deixara de existir num curto espaço de tempo.
Agora, três homens experimentavam sons, sem se importar muito com a reação daquela platéia única, que embora fingisse grande eloquência nesses assuntos modernos, não deixava de tampar os ouvidos de vez em quando.
Uma microcâmera desfocava na parede fragmentos de máquinas, que haviam sido transformados em uma versão beta de qualquer coisa que emitisse sons enquanto acendia luzes aleatórias.
À minha volta, as pessoas se drogavam com aquelas frequências inusitadas, rindo alto, ou fechando os olhos para deixar que as imagens se espalhassem pela retina com mais conforto.
O homem barbudo ria, o homem careca fazia o possível para não ir embora, e acabou cedendo após algum tempo.
Um super-herói japonês observava tudo, esperando o momento certo para convocar seu robô gigante, como é de praxe naquela terra de olhos puxados e cabelos lisos.
As gigantes serpentes de metal estavam prestes a se deixar tomar pelo sono, para um descanso de pouco mais de três horas, e percebi que era hora de partir.
Deixei minhas reverências no chão, caso alguém se importasse, e deixei aquelas frequências na memória recente, para fácil acesso na viagem de volta.
Aconteceu no centro da cidade.


escrito por Gabriel Caropreso às 12:31


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terça-feira, 19 de fevereiro de 2008



nojo

-Eu nunca disse isso, mas eu te amo, sua nojenta.
Ela sorriu durante alguns dias, enquanto adiava o dia em que finalmente o encontraria e responderia aquele comentário tão insensato. Ela detestava admitir, mas estava mais leve do que nunca.
Sentava-se no sofá da sala, aquele com a estampa colorida e fora de moda, e comia pipocas enquanto ouvis o melhor da sua coleção virtual de jazz.
Hoje em dia é tudo virtual, ela não só se conforma, como adora pensar nisso. Todo o conhecimento do mundo está ali disponível, sempre que ela precisar, mesmo que não precise. Só precisava daquelas palavras tão contraditórias.
No amor, é tudo contraditório. Por isso que ela odiava tanta gente.
Que insensatez, o amor.
Ela adorava as saudades, o frio na barriga e tudo mais. Não importa quantas velas você assopre na vida, o frio na barriga vai sempre te acompanhar.
"Eu te amo, sua nojenta."
Insensato gostar tanto dessas palavras.


escrito por Gabriel Caropreso às 18:20


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domingo, 10 de fevereiro de 2008



o meio.

Toda quarta-feira. Pessoas conversam assuntos sem importância em loops infinitos, enquanto aqueles quatro amigos tocam seus instrumentos em uma louca improvisação descompassada que dura séculos. Ali ninguém tem hora para voltar, já que não é mais possível voltar.
O garçom insiste em trazer "Uma breve história do tempo" quando pedimos os cardápios, e os clientes costumeiros folheiam menus de outros lugares enquanto movem suas colheres despreocupadamente em xícaras de chá pela metade.
Nós passamos algum tempo tentando entender o lugar, mas acabamos desistindo e curtindo o resto da noite, que havia acabado de terminar e começar novamente, como qualquer professor de etiqueta nos aconselharia.
Não que não houvessem professores de etiqueta, mas eles estavam preocupados demais apostando na corrida de castores, tradicional evento anual.
Tiramos férias, e nos lembramos mais uma vez de como seria nossa vida em outras ocasiões.
Não tão boa assim.


escrito por Gabriel Caropreso às 21:35


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